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domingo, 21 de março de 2010

Réquiem para Eric Ball




Depois do jantar (um sanduíche de atum e um copo de leite gelado) Jonas Barbavelha postou-se diante do Toshiba três em um e pensou um pouco antes de ligá-lo. Meu deus, provavelmente ele deveria ser uma das últimas pessoas na cidade a ter um aparelho como aquele. Em pleno Século XXI, ouvir fita cassete era coisa de velho. Bem, ele tinha apenas 22. Ele havia encontrado a fita esquecida sob o banco do metrô. Curioso, leu o conteúdo escrito em seu corpo: “Réquiem para Eric Ball”. Não era comum encontrar relíquias perdidas por aí, por isso resolveu dar um presente a si mesmo àquela noite.
Jonas abriu o TAPE DEC e com um pano retirou a poeira. Não se lembrava da última vez que utilizou aquilo. Ele colocou a fita e ligou. Jonas esperou alguns instantes, mas nada de música clássica, Rock ou qualquer coisa parecida. Ouvia apenas um chiado. Ele olhou para dentro do TAPE DEC e viu que um bocado de fita já estava enrolada. Resolveu aumentar o volume até a metade torcendo para que a música não surgisse de repente. Então, o que lhe pareceu chiados e distorcidos ficou claro como água cristalina. Mesmo assim, ele se aproximou de uma das caixas de som para ter certeza do que ouvia. Ficou um tempo parado escutando numa espécie de torpor. Segundos depois ele saia de seu quarto.
Na sala, sentados no sofá, Alicia e Klaus Barbavelha assistiam um programa de variedades e não perceberam quando o filho entrou. Foi tudo muito rápido. E calculado. Jonas atacou o pai com um golpe certeiro no lado direito da cabeça. Ele deu um segundo golpe que o derrubou de costas no chão suficiente forte para deixá-lo convalescente. Com o susto, sua mãe levantou-se caminhando de costas procurando uma falsa proteção. Alicia tropeçou nas próprias pernas e caiu sobre o raque derrubando a televisão, ficando presa no espaço que os objetos tinham em relação a parede. Segundos depois, Jonas a atacava com golpes precisos na cabeça até transformá-la num bolo irreconhecível de carne e sangue. Quando terminou com ela, atacou o pai novamente fazendo o mesmo com ele. Ao terminar o serviço, parecia que tinha corrido uma maratona. Estava todo suado e se sentia o sujeito mais sujo do mundo, pensou em tomar um banho, mas desistiu da ideia. Seu estômago estava roncando de fome. Ele simplesmente voltou para o quarto, aproximou-se mais uma vez da caixa de som e ficou lá até a fita acabar. Tirou-a do TAPE DEC e colocou-a no bolso da calça, procurou sua carteira e saiu. Jonas foi caminhando até o Macfield’s, uma lanchonete que ficava aberta 24 horas, para comer um “X-salada. Quando chegou lá, encontrou uma mesa bem afastada e fez seu pedido. Ele conseguiu comer dois Xis, e tomou dois copos médios de refrigerante assustando o pessoal no atendimento. Ficou um tempo contemplando a avenida que levava para a zona norte da cidade. “Hurricane” de Bob Dylan, tocava nos alto falantes da lanchonete. Eram 22h00minhs. a lanchonete estava a mil por hora. Jonas gesticulou para uma garçonete que passava solicitando a conta. Instantes depois ela voltou com uma caderneta bordô e lhe entregou. A conta havia dado 25 pratas. Ele arrancou duas notas de dez e uma de cinco da carteira, colocou dentro da caderneta e saiu. Tomou a direção do cais do porto assobiando a melodia que havia aprendido.

Horas mais tarde Carla Amachio conseguia encontrar o antigo toca fitas de sua coleção de velharias. Assoprou bem para tirar a poeira de dentro do TAPE DEC. Antes, porém, testou para ver se certificar se o bicho ainda funcionava. Tirou a fita K7 que havia encontrado sobre a mesa na lanchonete da bolsa e a colocou no aparelho. Esperou. Minutos depois ela procurava o TAURUS 38 que seu pai escondia atrás da estante da sala. . .

quinta-feira, 4 de março de 2010

Algumas centenas de almas



O presidente sentou-se na cama para tirar os sapatos. Odiava aquelas reuniões oficiais, mas fazia parte do pacote. No banheiro, a Primeira Dama tomava uma ducha quente para aliviar. Ela também não gostava muito daquilo, mas quando seu marido resolveu ser um político, ela teve de abdicar do seu desejo de ser artista plástica para se dedicar exclusivamente a ele. Esforçou-se o máximo e exigiu dele o mesmo grau de comprometimento, por que o conhecia bem. Ele sempre desistia das coisas no meio do caminho. No meio do caminho, aparecia sempre algo diferente para ser feito e ele nunca focava no que deveria ser feito de fato.
Foram mais de quinze anos tentando para chegar lá. De repente, no entanto, o período de permanência é muito curto. Para um homem vindo da classe operária, ele deveria ser um grande exemplo para aqueles que não tinham esperança de conseguir algo melhor na vida. Mas nunca dizem que para se chegar lá, você deve fazer algumas concessões, acordos, escolhas, errar e ser o maior filho - da- puta da face da terra. O presidente aprendeu isso assim, na base da dor, mas quando se cansou dela, ele teve que apelar. E tudo tem um preço. E tudo finda mesmo.
Ele tirou a meia do pé direito e fez uma cara de nojo quando viu o estado deplorável que estava sua unha do dedão do pé. Mexeu os dedos para sentir o sangue circular; depois se ajeitou para fazer a mesma coisa com o pé esquerdo. Ao se levantar se deparou com a figura inesperada sentada no pufe laranja que a Primeira Dama havia ganhado da Embaixatriz do Marrocos na noite anterior.Ele havia solicitado que mandassem de volta para a casa deles. Simplesmente esqueceram. O Presidente tomou um susto, mas conseguiu se recompor.
- Mas que diabos! Como entrou aqui?
- Pela porta.
O presidente olhou para a porta. Ela estava fechada. Odiava-o por isso.
- O que é que você quer?
- Vim fazer uma visita de rotina. Sabe como é. É preciso fazer sempre a manutenção, às vezes esquecem o contrato.
- A Marta pode lhe ver aqui.
- Não vai. Ela está, digamos, muito ocupada com o vibrador.
- O quê?
- Brincadeira.
- Não é a hora ainda.
- Claro que não, você ainda tem muito tempo. Muito tempo para mim.
- E quanto tempo eu tenho?
- Você aprendeu a ser cínico com quem, Beni?
- Não enche.
De repente o Presidente se levantou e foi até a janela do quarto. No décimo terceiro andar do hotel, podia-se ver boa parte da cidade. Ele abriu a janela e correu com o olhar vago o mar da luzes. Seu interlocutor o acompanhou serenamente.
- Você quer me dizer algo, Beni?
O presidente fez um movimento leve, voltando para ele e depois para a rua.
- Vamos Beni, eu sei que quer me dizer algo.
- Você não aparece por acaso, não é?
- Mais ou menos. Não se acanhe. O que é que você quer?
- Mais tempo.
O interlocutor bateu palminhas de alegria.
- Certo, certo, certo. Isso implicaria modificações no contrato. Você estaria disposto a tanto?
O Presidente deu um longo suspiro. Havia esperado quinze anos. Era muito pouco para tanto tempo. Ele colocou os braços para trás e se voltou para o interlocutor.
- Quero mais quatro anos. Meu partido não tem um nome forte. Desejo que o trabalho seja prorrogado.
- Se preferir isso como desculpa por mim tudo bem. Mas sabemos que lá no fundo é bem mais do que isso, não é mesmo?
- Quais seriam as mudanças? – perguntou o Presidente ignorando o comentário do interlocutor.
- Sua oferta deve cobrir a anterior. Deve ser algo realmente sedutor.
O presidente pensou na esposa antes de responder.
- Quero a Marta fora disso.
- Nem pensei nela.
- Eu o conheço. Você é persuasivo e pode querer complicar lá nas letrinhas miúdas.
- Oh, Beni, assim você me ofende. Eu não faria isso contigo, afinal você foi meu melhor negócio até agora.
- Bem, eu sou o Presidente.
- Sim, você é.
- Não posso sair por ai arrecadando as verbas para você.
- Não. Mas você é o Presidente.
- Sou.
- Então...
- Então eu posso fazer as coisas de uma maneira indireta para você. Tomando medidas que podem facilitar a chegada dessas verbas para você.
- Ah, Beni como você é cruel.
- Não me olhe desse jeito. Quem faz as coisas acontecerem não sou eu.
- Pode ser. Mas tem um dedo muito grande seu nessa história.
- Quando podemos fechar o contrato?
- Você saberá.
O Presidente voltou-se para a janela novamente. Parecia tudo muito calmo. Ele estava calmo. A vida na cidade seguia seu fluxo normal. Ao longe, lá pelos lados do rio, nuvens carregadas traziam chuva. Relâmpagos impiedosos iluminavam um pedaço escuro do céu, pareciam ser um protesto do que ele acabara de fazer. Certas coisas não têm volta.
A Primeira Dama entrou no quarto enrolada numa toalha e imediatamente o Presidente voltou-se para o pufe. O interlocutor havia desaparecido do mesmo jeito que tinha aparecido. Odiava aquilo. Olhou para a esposa enquanto ela a procura de algo para se vestir. Estava ficando velha, mas ainda tinha um pouco dos traços da beleza de outrora. Ele ainda a amava.
- O que foi? – perguntou ela.
- Estou pensando.
- Pensando soa extremamente vago para mim.
- Bem, eu quero me reeleger.
A primeira dama parou por um instante. Parecia pensativa. O Presidente se aproximou dela e a abraçou. Ela ainda estava molhada e tinha um cheiro maravilhoso.
- Eu sei. Isso tudo é demais para você.
- É o que você quer?
- É o que eu preciso.
- E quanto vai lhe custar?
- Algumas centenas de almas – disse ele sorrindo tirando a toalha.