Páginas

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Meia de Natal

Cohen estava cansado. Porra, tinha uma vida inteira de frustrações, escolhas mal feitas e atitudes negativas que só poderiam acabar num quartinho nos fundos de uma casa no meio de uma periferia no cú da América do Sul.
Dezembro havia acabado de chegar, com suas luzes coloridas repletas de falsos sonhos e esperanças de borracha ou com alguma coisa que lembrava isso. E quando Dezembro chega sempre há pra ele um misto de alívio e desgosto. Alívio por ter conseguido passar ileso os 335 dias; desgosto por saber que virão outros de possíveis aborrecimentos. E tinha Clara. Não via há um bom tempo sua filha. Zilda arrastou a menina pelos braços com uma mala cheia de roupas, numa tarde, obrigando-o a vê-la quando sua vontade de transar não cabia dentro da sua boceta. Então ele ia até a sua casa, dava uma, via a menina e saía fora.
Sete meses já haviam se passado desde então. Agora tava indo ver a garotinha. E não tinha presente. E não tinha dinheiro. Queria lhe fazer uma surpresa. Arranjou uma roupa de Papai Noel e ia dar um Natal melhor pra ela. Porra, já que era pra fingir, tinha que fingir bonito. Com classe. Colocou a barba falsa, a peruca e depois o gorro ridículo. Pegou o saco vermelho e conferiu o material que tava dentro dele. Tá certo, é isso aí. Não tem jeito mesmo. Saiu e foi em direção à parada de ônibus. Ninguém o reconheceu.
Algumas crianças ficaram malucas por ele, gritando "Papai Noel", e outras quase arrancaram sua calça. Uma outra pulou em seus braços depois que fugiu da mãe e atravessou correndo a rua sem olhar pros lados. Diacho, às vezes as coisas poderiam ter sido bem melhores. Ele se livrou dela. Devolveu-a pra mãe. Ficou na parada e tomou o ônibus. Cinco pontos depois ele desceu. Parou num bar. Um bando de figuras obscuras ficou olhando pra ele.
- Ô, Papai Noel, me dá uma bocetinha de classe pra eu comer assada nesse Natal – disse um deles.
- Se a Danielle Winits estiver aí dentro, eu pulo dentro desse saco e fodo com ela – disse outro.
Risos.
Ele não riu.Pediu uma branquinha e matou-a numa golada só. O negócio desceu quente. Ele tava ligadão agora. Saiu do bar e ficou parado na esquina esperando. Um carro passou com quatro rapazes e um deles lhe apontou o dedo médio e disse um belo palavrão. Certo. A vida vai acabar pra você um dia, meu garoto. Mediu todos os prós e contras na cabeça. O.k. É isso. Seguiu pela calçada até chegar ao posto de gasolina. A loja de conveniências estava aberta. Conferiu mais uma vez o material no saco e dirigiu pra loja.
Havia duas pessoas lá dentro. Um velho com um saco de batatas fritas e a moça que fazia o atendimento. Ao entrar na loja ele já segurava o revólver escondido dentro do saco. Quando ele ameaçou abrir a boca pra anunciar o assalto, a moça disse:
- Pô, Ingo, pensei que você não fosse vir mais, caramba. Olha só a hora - ela apontou o relógio na parede, que marcava dez e meia.
Ingo?
Ele guardou o revólver.
- É pra você ir pra frente do posto e ficar lá balançando o sininho.
Balançando o sininho?
- Tá bom.
Ele foi pra lá. Sete anões o aguardavam ansiosos, de braços cruzados. Pareciam putos da cara. Um deles, com cara de bunda, se aproximou e fez um sinal com o dedo pra que ele se aproximasse. Cohen abaixou.
- Olha aqui, Ingo – começou o anão – vê se não te atrasa, porra. A gente tá te esperando há um tempão aqui. As crianças estão malucas. Olha como elas pulam enlouquecidas. Parecem um bando de macacos querendo banana. Vê se põe logo esse teu rabo gordo naquela porra de cadeira. Vai lá fazer o teu papel, que eu faço o meu. Ok?
- Tá.
O que era mesmo que ele ia fazer ali?
Um roubo?
Cohen sentou na cadeira. Haviam feito um altar típico de Natal, com luzes e tudo mais. Um saco. Ele colocou o saco, com o revólver, ao seu lado. E uma das crianças que estavam esperando o Papai Noel se desvencilhou da mãe, foi correndo e pulou em seu colo, lhe acertando os bagos. Jesus Cristo! Que dor dos diabos! Mas ele agüentou firme. Depois dela vieram outras e outras. Quando deu por si já eram sete da noite, mas ainda havia sol. O horário de verão. Passou rápido o dia. Os anões já se preparavam pra se mandar.
- Hei, Ingo – disse um deles – por que hoje você não deu seu show de dança?
- Bati o pé na mesa de casa.- Ah. Tu não vai pegar a grna da gente lá na loja?
Grana?
- Ah, é. A grana.
- É, panaca, a Melinda vai sair fora e esquecer de pagar a gente, cara.
Então ele seguiu até a loja. A tal Melinda estava lá. Preparava-se pra sair. Estava de cabeça baixa, arrumando o caixa. Cohen fixou seus olhos bem ali. Ela levantou a cabeça.
- Ah, é você. Já acabou o dia, não é?
- É. Dia duro. Elas estavam impossíveis hoje.
- Pensei que você gostasse de crianças.
- E gosto. Minha filha sabe o quanto.
- Sua filha? Pensei que fosse gay.
- Hã? Quer dizer, a minha afilhada, Rose. Chamo ela de filha. Você sabe como é.
- Tá esperando o dinheiro, né?
- Os rapazes tão querendo sair fora.
Melinda abriu o caixa, tirou algumas notas de 50 e entregou para Cohen.
- Quatrocentos.
- Quatrocentos.
- É, quatrocentos.
- Quatrocentos paus divididos por oito?
- Isso. Quatrocentos paus divididos por oito. Até o Natal
- Isso dá cinqüenta pra cada um.
- É. Foi o combinado.
- Cinqüenta.
- Olha aqui, Ingo, se não tiver bom você me fala, porque aí eu arrumo outro pra pôr no teu lugar.
O que ele tinha ido fazer ali mesmo?
Ah, é.- Isso é um assalto.
- Se você acha...
- Não, você não entendeu. Isso é um assalto.
Cohen tirou do saco o revólver e apontou pra Melinda, que deu um salto pra trás.
- Mas...
- Um assalto. Passa a grana.
Melinda tirou todo o dinheiro que estava no caixa e entregou para ele.
- Quanto tem aqui?
- Três mil e trezentos.
- Ah, agora sim. O que tem atrás daquela porta?
- A dispensa.
- Entra lá.
- Quê?
- ENTRA LÁ, PORRA.
Melinda entrou.
- Tranca a porta.
Ele colocou algumas caixas pra obstruir a passagem dela. Depois arrancou o telefone do lugar, com fio e tudo, e saiu. No caminho encontrou o anão com cara de bunda e lhe entregou os 400. O anão contou o dinheiro.
- Hei, Ingo, tá sobrando 50 aqui.
- É seu, pelo meu atraso.
- E você?
Ele se mandou pela avenida, se livrando da roupa de Papai Noel no caminho. Guardou o revólver na cintura e, ao chegar à parada, pegou o primeiro ônibus que apareceu. Ia para zona norte. Pagou o cobrador e sentou-se bem ao lado da janela. Viu algumas viaturas indo em direção ao posto com suas sirenes gritando e suas luzes vermelhas piscando. Dezembro. Dessa ele escapou ileso. Ainda tinha o presente de Clara pra comprar. Tinha o peru. As bebidas. Havia um clima de alegria no ar. Bem artificial como sempre é.
Vai ano e vem ano e as coisas nunca mudam. Oscilam um pouco pra cima, um pouco pra baixo, mas é a mesma merda de sempre. Então ajeitou a grana no bolso da calça jeans e o ônibus parou num ponto. Subiu uma mulher que lhe pareceu ter uns vinte e poucos anos e sentou-se ao seu lado no banco. Cheirava bem. Cheirava a banho. Ele riu pra si. Bom, nem sempre é uma merda. Às vezes se oscila pra cima. Bem pra cima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário