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domingo, 24 de janeiro de 2010

DEVORADO


Daniel olhou para trás para ter certeza de que poderia chegar ao seu destino. Corria desesperado seguindo pela pequena trilha jogando pedaços de pedras para o ar. Daniel sabia que estava ferrado. Era questão de tempo a não ser que conseguisse chegar até o portão sul do estuário. Conseguindo transpor o portão de quase três metros estaria a salvo. Mas a criatura era veloz. A respiração estava acelerada, as pernas pesadas. E tinha a chuva. Uma semana inteira chovendo naquela cidade. Tomaria algumas providencias em sua vida caso conseguisse escapar. Não haveria mais cigarros, festas e bebidas. Iria se tornar um homem saudável e responsável. Merda. Por que diabos só damos valor a certas coisas quando estamos por um fio? Vivemos sempre arriscando, mas só tomamos noção de certas coisas nesses momentos em que você sabe não ter mais volta.
O som abafado das passadas aceleradas de Daniel parecia um marca passos em final de carreira. Choc, choc, choc,choc. Trinta segundos antes havia se arrependido de ter entrado escondido nos galpões do estuário para roubar fios de cobre para vender. Apesar do quase breu as luzes dos postes da avenida ao lado eram suficientes para deixar à mostra a trilha. Daniel conseguia desviar de obstáculos e a coisa atrás dele também. Ela deveria estar ali há dias, escondida na espreita de uma presa qualquer, esperando pacientemente para se alimentar.
Ele já conseguia ver o portão, tentou acelerar mais ainda o passo, porém percebeu que já estava no máximo. Poda sentir a coisa se aproximando atrás dele. Podia ouvir a respiração pesada. As pedras no chão voavam mais altas, a chuva machucava seu rosto e ele só pensava em se salvar.
Finalmente Daniel conseguiu chegar ao portão e com um impulso jogou seu corpo sobre ele. A força fez com que o portão pendesse para frente e para trás numa dança louca. Dois ou três segundos depois começou a escalada pela sua vida. Daniel segurava com firmeza . Jogou o braço direito para cima, depois e perna esquerda; depois o braço esquerdo e a perna direita até consegui alcançar o topo. Não tomou conhecimento do arame farpado, cravou seus dedos sentiu uma leve dor, mas a adrenalina despejada em seu sangue fez com que a leitura fosse outra. Daniel se jogou de uma altura de quase três metros, deu uma pirueta desengonçada no ar para dois segundos depois bater as costas no chão e apagar.
Quando abriu os olhos, viu o breu total. Levou um tempo para ele ter certeza de que ainda estava vivo. Percebeu que estava de costas para o chão . A chuva caía mais fraca dessa vez. Lembrou-se de tudo e deduziu que estava ali há um bom tempo, uma hora talvez. Ao tentar se levantar percebeu que alguma coisa estava errada. Tentou outra vez. Nada. Fez força outra vez e mais uma vez, nada. E mais essa agora.
- O que tá acontecendo, caramba?
No começo sempre vem a negação. É natural.
- Mais uma vez, vamos lá força, garoto, você consegue. - disse para si mesmo tentando demonstrar coragem.
Nada.
- Jesus, eu estou tetraplégico!
Era isso. Terminaria seus dias afogado com a água de chuva. Talvez morto por hipotermia, fome ou alguma doença. Milhares de pensamentos ruins passaram pela sua cabeça. Daniel estava tão concentrado neles que havia simplesmente esquecido da criatura. Que ironia. Havia conseguido escapar da morte eminente para entrar numa outra mais lenta e estúpida. De repente, ouviu um barulho. Tentou se concentrar para ver de que lado vinha. Percebeu que era do seu “lado” da grade. Eram passos de alguém, ou alguma coisa, estudando o terreno. Sua respiração aumentou, mesmo naquele estado deplorável ele sabia o que estava lhe espreitando. Ainda tentou ver alguma coisa virando o rosto para o lado escuro mas, não viu nada. Então ele ouviu outro som parecido com um grunhido. Desta vez ele conseguiu identificar a direção. Vinha de seus pés. Ele sabia que se acontecesse alguma coisa seria a partir dali.
Foi quando algo agarrou a sua perna esquerda. Ele não conseguiu distinguir se foi uma mordida ou garra entrando em sua carne, caso estivesse com suas terminações nervosas em dia, sentiria uma dor dos diabos e possivelmente teria desmaiado. A criatura simplesmente havia arrancou seu pé esquerdo e começou a mastigá-lo. O som de seus ossos sendo quebrados lembrava muito o de pipocas no microondas. Aquilo fez com que ele percebesse que também estava faminto. Minutos depois, houve outra pressão, sua perna levantou um pouco e seu corpo foi deslocado alguns centímetros para longe da grade. Ele estava sendo comido vivo e não sentia dor nenhuma. Morreria logo. Provavelmente devido a possível hemorragia que tinha. Mais som de osso sendo quebrado. Daniel fechou os olhos e começou a pensar num grande pedaço de lasanha enquanto era devorado vivo por algo do qual ele nem sabia o que era. E nem lágrimas de dor podia deixar escapar de suas entranhas.

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